quinta-feira, 30 de maio de 2013

ENTREVISTA: RONALDO CORREIA DE BRITO

Em Janeiro deste ano, tive a honra fazer uma entrevista, (publicada na Revista Verbo 21) com um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea, Ronaldo Correia de Brito. 
Uma grande honra também colaborar com a VERBO 21, uma das grandes referências para quem aprecia a boa literatura. Confira a entrevista na íntegra:


Portador de verdadeira maestria narrativa, o consagrado contista Ronaldo Correia de Brito, vencedor do prêmio São Paulo de Literatura de 2009 com o romance Galileia (Alfaguara), lança seu segundo romance, Estive Lá Fora. Muito distante de ser um regionalista, Ronaldo mescla história, memória pessoal e memória inventada em um romance profundo e critico, ambientado em um Recife decadente na época dos "anos de chumbo". Segundo seu autor, o romance é, ironicamente, "a autobiografia de personagens da década de 60 e 70."




Por André Guerra
Fotos: Jorge Clésio


Em Estive lá fora, a ditadura militar aparece como pano de fundo, e o Recife, onde você vive desde 1969, é retratado, radiografado. Além disso, você, nas notas finais, refere-se a trechos de notícias e depoimentos. Nesta obra, na sua produção e no romance em si, em que medida a ficção toca, mescla-se à realidade e/ou se afasta dela?
Embora na construção do personagem Cirilo eu tenha mais uma vez usado o recurso da memória inventada, também fiz uso da história, do que vivi e pesquisei sobre os anos sombrios. Conversei com vários amigos que foram engajados na política, alguns na luta armada, e os depoimentos deles me serviram de estofo para o romance. Cândido Pinto e Rosa Reis são em parte baseados em personagens verdadeiros, fortemente ligados aos acontecimentos do Recife. Cândido era bem melhor do que o retratei, a partir de anotações fornecidas pela família. Mas eu precisava que Geraldo fosse daquela maneira e perverti a história para alcançar o resultado que buscava na minha literatura.
Cirilo, de Estive lá fora, e também Adonias, de Galileia, são marcados por uma relação conflituosa com a própria memória, que os atormenta, ao mesmo tempo em que os atrai, que eles buscam e ao mesmo tempo rejeitam, e que a eles se impõe. Pode-se dizer que há um padrão subjetivo entre esses personagens? Fazem parte desse resultado que você busca em sua literatura? Alguma ponte pode ser estabelecida com a memória involuntária, de Proust?
Cirilo e Adonias têm uma relação coflituosa com a memória. Adonias tenta livrar-se de conhecimentos que lhe parecem inúteis, como os nomes dos pássaros e das árvores. Ambos são perseguidos pelo crime de João Domísio e acreditam que pelo sacrifício da própria vida podem redimir-se e redimir as pessoas que amam. Depois de assassinar Ismael, Adonias aceita ceder metade dos seus dias na terra, em troca do primo voltar a viver. Cirilo também acredita que o irmão será poupado da morte, se ele morrer no seu lugar. 
Não fui um leitor apaixonado de Proust. Li-o e continuei imune ao seu estilo. A memória, na minha literatura, é sempre algo incômodo, de que tento livrar-me através da escrita, achando que dessa maneira poderei esquecer-me do que me atormenta.
O personagem João Domísio, a quem Cirilo sempre se refere em Estive lá fora, e que é marcado pelo assassinato da esposa, está presente em Galileia, no magistral conto Faca, que dá título ao livro em que está inserido, e, não menos magnífico O que veio de longe,de Livro dos Homens, envolto em mistério que atravessa os séculos. Trata-se também de um exemplo de memória inventada ou realmente houve um João Domísio no sertão dos Inhamuns? Em que medida a autobiografia e a história de sua família atravessa sua narrativa?
Retorno sempre a esse crime real, que marcou minha imaginação de criança. As histórias familiares podem virar um legado maldito. Acho que a única maneira de livrar-me desse crime que não cometi é falar dele, sempre. Eu já nem sei em que medida existiu esse João Domísio – que não tinha esse nome, é claro –, nem até que ponto eu o inventei para reforçar meu horror à violência contra as mulheres. Em Galileia, Donana, a vítima, vigia os homens há mais de trezentos anos, para que eles não assassinem outras mulheres. Da parede de um açude, onde se equilibra na ponta dos dedos dos pés, ela espreita. Sei que essas coisas nunca aconteceram, mas existiram sempre. A literatura se tece de imaginação e realidade.
Você aborda, no romance, através dos irmãos Geraldo e Cirilo, duas posturas revolucionárias distintas, mas tendo em comum serem contrárias ao autoritarismo e a repressão da época: Geraldo é adepto (e líder) do movimento revolucionário militante de esquerda no Recife e Cirilo, adepto da contracultura. Ao retratá-los, você não levanta nenhuma bandeira e, pelo contrário, aponta ironicamente as carências das duas vertentes. Onde se inseria jovem Ronaldo que chegou ao Recife em 1969? E na narrativa de Estive lá fora?
Um amigo, Abel Meneses, cunhou um lema para nossa causa sem bandeira: a todos conhecer e a nenhum pertencer. Eu era muito jovem, um adolescente que demorou a entrar na puberdade e olhava o mundo com espanto, medo e deslumbramento. Mesmo sendo tão jovem, frequentava as rodas artísticas, como observador e crítico silencioso. O poeta Ângelo Monteiro, com quem morei vários anos, falava que eu seria o biógrafo das pessoas daquele tempo. Timidamente debochado eu falava que escreveria a “autobiografia” de todos eles. Estive lá fora, ironicamente, é um pouco isso: a “autobiografia” de personagens da década de 60 e 70. “Autobiografia” porque eu descrevo ou deformo pessoas, na perspectiva dos meus sentimentos. Escreveram que os personagens do romance não se diferenciam, parecendo todos iguais. Discordo desse ponto de vista, fui cuidadoso em aprofundar os traços de cada um, Paula é diferente de Fernanda e de Rosa Reis; Cirilo muito diferente de Geraldo, e assim por diante. Fiz a opção de centrar a narrativa em Cirilo e não aprofundar as histórias e os dramas de outros personagens. O romance poderia se chamar “Cirilo”.


Concordo plenamente, Ronaldo. Há, sim, muitas nuances que diferem os personagens. Outro tipo de análise e de rótulo que você declara abertamente não gostar e não aceitar é a alcunha de autor regionalista, postura com a qual concordo, por ver a paisagem sertânica de suas obras como um pano de fundo, sendo apenas uma das diversas partes de sua narrativa centrada em aspectos subjetivos, conflituosos, viscerais de seus personagens. Em Estive lá fora, porém, esse cenário se modifica. A que se deve essa migração de seu ambiente narrativo?
Em Estive lá fora fiz questão de referir – embora pudesse ser interpretado como um excesso didático ou explicativo – Hermann Hesse como um “autor alemão com marcas românticas e regionalistas”... É uma citação de Thomas Mann, que analisa Hesse dessa maneira. Para quem não conhece minha trajetória de escritor, passa despercebida a ironia, pois também inventaram para mim esse epíteto de “um escritor regionalista”, da mesma maneira que tratavam Graciliano Ramos como “um sertanejo culto”. No ano de 2003, no lançamento de Faca em São Paulo, meu editor da CosacNaify, Augusto Massi, me alertou para ter cuidado com certas pechas que tentariam pespegar em mim de que eu dificilmente me livraria. Alguém saiu na frente e tascou o “regionalista”, tornando-se uma espécie de maldição a partir da qual todos tentariam ler meus livros e reduzir minha literatura a um lugar. Porém quando você lê sem qualquer preconceito o conto “Eufrásia Meneses”, deLivro dos Homens, percebe que embora a geografia seja sertaneja e existam quatro ou cinco palavras do universo local, a personagem é complexamente urbana, seus dramas feministas são os mesmos de uma mulher de Nova Iorque ou São Paulo ou Calcutá.
Portanto, meus personagens sertanejos de psicologia urbana habitam um mundo rural em ruínas, contaminado pelas cidades. Há algum tempo eu vinha escrevendo narrativas que tinham por cenário as cidades. A geografia para mim é casual. Posso colocar meus personagens em Berkeley, na Mellah de Fez ou numa rua de Juazeiro do Norte. Ou ainda numa ilha imaginária e deserta. Ambientar um romance no Recife não é propriamente uma migração. Até porque a memória do personagem Cirilo é sertaneja.
Você disse que usa a memória em sua literatura para esquecer-se do que lhe atormenta. Seus dois romances e alguns de seus contos são intensamente marcados pela memória. Explorar a memória subjetiva seria uma possível tendência do romance brasileiro contemporâneo? Você se considera um autor de obras memorialistas? Como você define sua literatura? Como se vê no atual contexto literário do Brasil?
Um memorialista, nunca. Um memorialista é alguém com memória histórica e nada do que escrevo é confiável como registro. Por exemplo, em Estive lá fora eu desloco uma boate que funcionava no cais do porto, no bairro do Recife, para o prédio ao lado, onde funcionava um sindicato de portuários. Eu precisava dessa mudança para justificar certos sentimentos do personagem Cirilo, que a Ié! Ié! Drinks (o tal cabaré) ficasse um andar acima no pardieiro. Noutra passagem do mesmo romance, Cirilo caminha e pisa em bosta na calçada da igreja barroca Madre de Deus e isso provoca nele lembranças de um altar rococó. Então se trata de uma memória bastante arbitrária, inventada. Acho que o romance brasileiro apela bastante para a memória dos seus autores. É inevitável, quando escrevemos dramas psicológicos. Dessa maneira, me insiro no movimento de escrita em voga.


Sua escrita é marcada por cenários e relações fortes, impactantes, e percebe-se isso nas vivências de Cirilo em Estive lá fora. Ele circula pelo submundo do Recife, transita entre os excluídos, bêbados moradores das palafitas, usuários de drogas, como se se sentisse um caranguejo que vive na lama do Recife. Qual a intenção ao focar no que está à margem? Denúncia de uma época? Um retrato da decadência social? Um estado existencial de decadência do homem urbano?
Ontem recebi a visita do amigo Everardo Norões, um poeta e escritor que sempre refiro, porque gosto muito do que ele escreve. Everardo também notou que Cirilo se relaciona com um Recife marginal, não chega à classe média a que naturalmente pertence, como um estudante de medicina. Já me senti um indivíduo à margem, um estrangeiro, e por isso fico à vontade ao escrever sobre pessoas com quem me relaciono e, consequentemente, conheço melhor. Em medicina, dediquei-me ao serviço público, nunca trabalhei para os ricos e tive oportunidade de conhecer muitos tipos humanos. Sempre tive amigos marginais, embora eu pareça um careta, um cara respeitável e certinho. No Recife, os artistas circulavam por esse lado marginal da cidade, fuçavam o lixo e cheiravam as excrescências. Recife é e sempre foi uma cidade cruel, com um apartheid social violento, ao mesmo tempo conservadora e revolucionária. Um estudante pobre, do interior, de outro estado, com ideias próprias e destoantes seria naturalmente desprezado e maltratado. É o que acontece com Cirilo. Juntar-se aos miseráveis, pescadores, homossexuais, drogados e outros infelizes seria um caminho político ou existencial. Geraldo, o irmão, se engaja na política. Cirilo busca um terceiro caminho, mais livre.
Como você define esse caminho mais livre? Quem é, enfim, esse instigante personagem? E quanto à criação, podemos dizer que é fruto de um amálgama entre a memória subjetiva, a memória histórica e a memória inventada de seu criador?
O capítulo 22 é, a meu ver, o mais importante de Estive lá fora, porque nele se traçam as escolhas de Cirilo. Numa carta endereçada à mãe, mas que nunca enviou porque talvez fosse excessivamente forte e dolorosa, ele renega o comunismo do irmão, ataca os poderosos do Recife e a Igreja, se coloca diante de sua era, com os acenos da contracultura. Cirilo busca um caminho próprio, uma liberdade utópica que não se vincula a nenhum discurso de direita ou esquerda, a nenhuma cartilha partidária, nem mesmo à contracultura e às barricadas estudantis de 1968. É um caminho difícil, no limiar da loucura ou dissolução, ao mesmo tempo em que se sente amarrado a mil deveres, como o de ganhar dinheiro e ajudar a família. Eu não sou Cirilo, mas nenhum dos personagens que criei me apaixonou tanto, me deixou tão inquieto e desorientado. Desejava ter escrito um livro mais ensaístico sobre questões da época, porém no curso das correções de provas, sacrifiquei páginas e páginas de ensaios, para dedicar-me à trama, às várias portas em que o livro se abre e dessa maneira trabalhar mais conflitos e tensões. Hoje reconheço que os ensaios de uma certa maneira permaneceram em Estive lá fora, bem curtos, alguns não maiores do que um parágrafo, mas que mesmo assim são exposições de ideias, pontos de vista. Jorge Luis Borges pratica ensaios nos seus contos. É possível e ele consegue. Aprendi que não são necessárias as cem páginas que sacrifiquei para que um romance seja de natureza ensaística.
Percebe-se em Estive lá fora, bem como em Galileia de forma intensa, também em alguns contos de Faca, Livro dos Homens e Retratos Imorais, muitas referencias à Bíblia, sobretudo ao Velho Testamento. Percebe-se ainda que essas referências são feitas muitas vezes através de uma fina ironia, outras vezes de forma contundente. Que representatividade a liturgia judaico-cristã tem na formação do escritor Ronaldo Correia de Brito?
Já falei inúmeras vezes que aprendi a ler numa História Sagrada que minha mãe levou para o sertão dos Inhamuns, quando se casou com meu pai. Ela era professora primária, ofício que abandonou após o casamento, e seu pequeno caixote de livros serviu muito ao meu pai e a mim. Lembro o dia em que meu pai pediu que eu lesse de pé e em voz alta um trecho do relato de José do Egito e falou para toda a família escutar que eu já sabia ler. Utilizei essa passagem de minha vida no capítulo10 de Estive lá fora. Quando eu tinha de nove para dez anos, já havia adquirido muitos conhecimentos da História Sagrada e cheguei a um empate numa maratona sobre religião, na cidade do Crato, onde eu residia desde os cinco anos. Os dois finalistas eram tão afiados, que convidaram o bispo para a sabatina. É uma cena muito engraçada a daquele senhor alto e gordo fazendo perguntas a duas crianças. Eu era muito pequeno e vivo, os olhos arregalados e a cabeça grande. Continuamos empatados e o bispo escolheu o menino crismado. Eu não fora ainda e perdi o prêmio: um cordão de ouro com uma medalha de porcelana. Como prêmio de consolação me deram uma nova História Sagrada. A Bíblia, portanto, é o livro que me acompanha desde que nasci. Trata-se de um maravilhoso livro de narrativas, que marcou profundamente minha escrita.
Na cidade do Crato, onde morei dos cinco aos dezesseis anos, os rituais da Igreja Católica eram celebrados com bastante pompa. Dessa maneira fui iniciado no teatro sacramental: os rituais da Semana Santa, do mês de maio com as coroações, missas, bênçãos, ladainhas e procissões. Devo muito a esse teatro religioso e ao teatro popular do ciclo natalino e de reis.
Também devo ao imaginário familiar em torno da nossa ascendência judaica, cristãos novos vindos de Portugal.
Considero você, e não sou o único a fazê-lo, um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, com um perfeito domínio da narrativa, ao explorar recursos como cortes na linearidade dos fatos, flashbacks e finais deixados em aberto, por exemplo. Em que fonte você bebeu? Que trilhas percorreu para atingir tal maestria. E hoje? Quem você lê?
Sinceramente, não seria tão generoso ao fazer uma avaliação minha. Situo-me num plano de dificuldade apontado por Mário de Andrade, Câmara Cascudo e Guimarães Rosa, o de não conseguir resolver os impasses entre a literatura oral e escrita. Ao longo dessa entrevista você não me perguntou sobre a forte influência da oralidade na minha prosa. Vivi até os dezesseis anos num universo rural, em que se narrava através da fala. Minha avó, meu pai, meus tios e mesmo minha mãe, tão discreta e modesta, passavam o tempo inteiro contando histórias. E não me refiro apenas ao gênero maravilhoso, mas, sobretudo, às histórias de nossa família, à mitologia da região. O modo oral de contar histórias impregnou minha maneira de escrever. Alguns apontam como qualidade o meu texto sucinto, exato, seco, quase lacônico. Outros me criticam quando sou repetitivo e didático. Todas essas qualidades ou defeitos eu adquiri da tradição oral. Eu seria um contador de histórias igual aos que perambulavam pelas fazendas do sertão, se não tivesse me tornado leitor tão precocemente e não tivesse ido morar no Recife.
Comecei lendo a Bíblia, como já falei, que para mim sempre foi um livro de boas narrativas. Li bem cedo a Ilíada e a Odisseia. Li toda obra de José de Alencar e Machado de Assis até os quinze anos. Nunca mais consegui ler esses senhores, a não ser os contos de Machado. Depois vieram os russos, sobretudo Tchekhov e Dostoievski. E Borges, Borges, Borges, e a literatura latino-americana. E Walt Whitman. Li muito, de tudo, excessivamente, a melhor e a pior literatura. E vi cinema, uma das principais influências que recebi. Escrevo com os ouvidos e os olhos, sempre pensando em roteiros ou teatro.
Leio bastante literatura brasileira, sobretudo os escritores vivos e mais jovens. Recomendo.

Confira também a entrevista no site da revista, através do link: http://www.verbo21.com.br/v6/index.php/janeiro-entrevista/77-ronaldo-correia-de-brito

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