sábado, 9 de junho de 2012

Prefácio do livro "Mil Pedaços", de Yasmin Camardelli

De abismos e estradas

por André Guerra

Para Octávio Paz, “A feliz facilidade da inspiração brota de um abismo”, algo como ser tocado por um deus, como o diria Platão, no momento sublime de dar vida a algo, fazer brotar a beleza de onde antes só havia (no caso da poesia) um papel em branco e letras, palavras, frases em estado de dicionário. O abismo simboliza o inexplicável, o inefável, o incomensurável que habita cada ser humano, e que em alguns, movidos por uma incansável, inexplicável, inexorável busca, manifesta-se em poemas.
​Yasmin Manatta Camardelli foi tocada por um deus, por um deus libertador, mergulhou em seu próprio abismo como quem grita, como alguém que escreve para compreender-se, revelar-se, mostrar-se, traduzir-se, exorcizar seus demônios, louvar seus deuses, inventar e desinventar seus mitos, libertar-se de si mesma, por que não cabe em si, para não morrer, na busca de uma “síntese do eu profundo”:

“minhas palavras borbulham em minhas mãos
Deitam-se mansamente sobre o papel
Fazem-se a força que emana em mim
Sob o seu domínio ergo meu pincel.

​Essa doce jovem, como se vê no belo poema “quem eu sou?” ou no intelectual poema “geografia da alma”, afirma com gravidade ser escrava, serva da poesia, entregue à poesia como caminho para deslindar o vital conflito “entre ela e ela mesma” em:

“Sem essa angústia serei
Pó do meu próprio silêncio
E o pó não faz
Meu coração pulsar”

e o faz trazendo para nós estes retratos de alguém que “não pede licença para existir, para ser livre” e que tenho o prazer e a honra de apresentar.


​No olhar de Mikhail Bakhtin, retomado e desenvolvido por Julia Kristeva, “o texto é um mosaico de citações”, que dialoga com outros textos, mas também funciona como eco das vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças. E o texto de Yasmin reflete esse caráter dialógico, intertextual, como se pode notar em:

“Os grandes sertões veredas
Guardam nas memórias de um cárcere
Histórias de vidas secas dilapidadas
Em tempos de guerra e de paz,
Enquanto as cartas a Fradique Mendes
Percorrem as cidades e as serras
E os temidos capitães de areia
Deitam seus corpos jovens num mar morto”


quando a jovem poeta assume o papel de antena parabólica de seu tempo, como vaticina Ezra Pound.
​Pode-se ainda perceber claramente o texto de Camardelli como um mosaico de citações,por exemplo, no texto de abertura desse livro, sua belíssima “Homenagem a Villa Lobos”, um verdadeiro passeio pelo

“trenzinho do Caipira ...
Rumo às entranhas do Brasil...
Revelando faces ocultas
Desta exuberante nação.”

​E quem revela diversas faces, ocultas ou não, da riquíssima expressão musical brasileira é Yasmin neste seu marcante e apaixonado poema, que vai das cantoras do rádio até o experimentalismo tropicalista, passando por morros e Ipanemas, numa declaração de amor à nossa arte.

​Mas como a própria poeta anuncia, não falará apenas de belezas, e embora de pouca idade, já que (e ela mesma afirma, parafraseando Fernando Pessoa):

“O tamanho de um homem
não é dado pela sua estatura
mas pela extensão dos seus sonhos”,

a jovem demonstra um olhar agudo sobre a realidade que a cerca, o que se demonstra na sua paródia ao hino Nacional, no fortíssimo poema “quem?”, em “desvendando horizontes” ou no seu premiado poema “quero falar de crianças”. Sua exposição de motivos, sua tomada de posição, seu grito pelas dores do mundo salta aos olhos nos versos:

“As minhas mãos choram palavras
Cortantes lâminas afiadas”

​Um olhar de quem se reconhece portadora de um papel de agente de discurso e usa a poesia como veículo de denúncia crítica, expressão de revolta e indignação. Um olhar, também, por vezes amargo, marcado por um “brilho velho”, como se vê em “de novo existir”, “dia da poesia”, “instante de dor”, “desilusão”, ”restaurante” e “não sangro” mas que guarda um quê de esperança no poema “meu tempo” ou ao buscar

“o que de humano restou
guardado dentro do homem”

​A beleza das imagens construídas no poema “meu coração” encanta e surpreende pela maturidade lírica que encerram (ao lado de um belo arroubo juvenil de quem não processou completamente a saída da infância e que quer se fazer ouvir, e que expressa em turbilhões de palavras seu profundo silêncio), revelando um eu que se desnuda e se entrega por completo ao sentimento, sabendo-se céu escuro a ser banhado pela lua, que prefere “permanecer envolta/ em véus rasgados do delírio/ que repousar confortavelmente na seda da razão” (Palavras).
​E que magnífica cena a do poema “noite”, e que profunda reflexão a que está presente em

“ninguém pode prender um rio
Quando sua nascente
É o mar”

​Como a poesia é a própria vida tomando forma, não há poeta pronto. E como não há poeta pronto, a poesia oferece sempre um longo, árduo, doce, tortuoso, florido, intenso, encantado caminho. É longo o caminho a ser percorrido por essa talentosa jovem poeta.
​Há para Yasmin o mundo a se descortinar, quilômetros e mais quilômetros a caminhar, perscrutando os meandros da alma e do texto. Portadora de um talento estarrecedor, esta jovem segue, (agora que se despede da adolescência poética com esse mosaico de mil pedaços), em busca da depuração, do trabalho da palavra (tão equivocadamente separada do espírito poético que cada palavra carrega, quando são, inspiração e artifício, em verdade, indissociáveis) que virá com a maturidade, para enfim “transformar-se em livro”, dando forma a seus cadernos de adolescente, de onde jorra, emana, salta, explode seu maravilhoso talento, e que serão esteio para sua caminhada. Nesse regozijante e doloroso caminho, resta à delicada e poderosa vate encontrar a palavra como deslimite, pois para a palavra não há limite, assim como não há limite para Yasmin Manatta Camardelli e seu talento.


​​André Guerra é poeta, professor de literatura, autor e editor do blog Guerra e Poesia (andreguerraepoesia.blogspot.com)


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